Beijo do inferno - Capítulo 50

   O homem, com dentes cerrados, limpou o rosto ensanguentado com as costas da mão. Lentamente, ele se aproximou deles. Valentine, cambaleando como se estivesse prestes a cair, se apoiou nos dois pés, ele não perdeu a oportunidade quando o homem baixou a guarda. Ágil, virou-se rapidamente, avançando sobre o homem, torcendo o pulso dele como se estivesse despejando a última gota de força.

   — Ung…!

   Enquanto o homem gritava dolorosamente com o pulso torcido em uma direção estranha, Valentine, que derrubou a arma, aproximou-se de Yohan novamente.

  — Va- Valentine… .

   Yohan olhou para Valentine em estado de choque. Quando seus olhares se encontraram, os lábios sem cor delinearam uma curva suave. Valentine, visto após muito tempo, parecia muito mais pálido e desprovido de vitalidade do que Yohan lembrava. A palidez azulada de sua pele tornava-o ainda mais estranho. A cada passo vacilante de Valentine, sob a jaqueta de couro preta, o sangue escorria, pingando em um vermelho profundo.

  —… Yohan.

   Valentine, que havia chegado na frente de Yohan, caiu de joelhos. Então, ele passou os braços em volta dos ombros de Yohan para se agarrar a ele. Valentine, que segurava os ombros trêmulos dele, sussurrou em seu ouvido. O sangue quente que jorrou de sua boca encharcou o pescoço de Yohan.

   — Está tudo bem, Yohan. Está tudo bem, não… não se preocupe com nada.

   Em um sussurro, Valentine, que estava abraçando Yohan, apoiou a testa em seu ombro. Yohan estava tremendo tanto que não pôde deixar de se agarrar às suas costas grandes. O homem, que já havia se recuperado do ataque, segurou a arma com a outra mão e apontou para eles. Yohan fechou os olhos com força e abraçou Valentine com mais vigor.

  Bang…!

   Desta vez, um tiro certeiro sacudiu o espaço estreito com ainda mais força. Mas estranhamente, ele não conseguia sentir nenhuma dor. Yohan gentilmente abriu os olhos bem fechados. O homem que apontava a arma para eles há pouco estava caído no chão, sangue escorria de um buraco em sua testa e manchava o chão de vermelho por toda parte.

  — Vocês estão bem?!

  Um grupo de homens armados correu em direção a eles. Alguns deles correram em direção a Yohan e os demais em direção ao homem caído. Bang!  Bang! O som de armas de fogo disparadas sucessivamente contra o corpo do homem ecoando no antigo apartamento.

   — Bem, Valentine…a arma… 

   Yohan murmurou desordenadamente com a voz abafada. Sentia a cintura de Valentine, onde seus corpos se tocavam, encharcada com um fluxo úmido de sangue. Tentou articular a condição de Valentine, mas sua mente vazia não trouxe palavras simples à tona. Apenas quando Yohan soltou uma respiração entrecortada, enquanto abraçava Valentine, que parecia ter perdido a consciência, é que ele percebeu. Valentine, que parecia ter desmaiado, segurou a bochecha de Yohan.

   — Yohan…  

   Valentine disse novamente, e um coágulo de sangue saiu de sua boca. Yohan balançou a cabeça freneticamente e gaguejou.

   — Não diga nada. — Ele estava pensando…consertar tudo…e pedir desculpas….— Por favor, Valentine… por favor, não diga nada.

   Valentine esfregou lentamente os olhos dele e Yohan, em pânico, percebeu que estava chorando. Valentine enxugou seu rosto molhado novamente. E como se tivesse atingido o limite, sua cabeça caiu molemente para frente.

   — Valentine…!

   Um soluço, mais parecido com um grito, saiu da boca de Yohan. Os guarda-costas que levaram ele para longe de Valentine cercaram o homem para estancar o sangramento de seu ferimento. Pouco depois, o som de uma sirene ecoou alto no beco tranquilo.

***

   A cirurgia prolongou-se. Graças ao fato de a bala ter passado perigosamente perto dos órgãos internos, um ferimento fatal foi evitado, mas a remoção dos fragmentos de bala cravados no abdômen ainda era uma operação arriscada.

   Yohan esperou a cirurgia de Valentine terminar, sentindo-se vazio. Ele não conseguia pensar em nada, apenas a sensação de sangue jorrando do corpo em contato com o seu voltou à sua mente repetidamente. O desespero que Yohan nunca havia experimentado antes o deixou sem fôlego.

   Valentine vai ficar bem. Tem que ficar bom. Não tem como não estar tudo bem.

  Mas… e se não estiver, o que vou fazer?

   O que diabos eu devo fazer…?

   — Haa…

    Yohan se agachou, mal conseguindo engolir as lágrimas que esquentavam a ponta do seu nariz. Ele se inclinou o suficiente para apoiar a testa nos joelhos, lutando para reprimir sua imaginação sinistra. Embora já tivesse passado algum tempo desde o início da operação, os calafrios por todo o corpo não pararam.

    — Yohan, é melhor você fazer uma pausa. 

   Lucas, que não aguentava ver Yohan tão nervoso disse. Ele também estava pálido como um cadáver. Yohan balançou a cabeça com uma expressão atordoada.

   — …Não. Eu vou ficar.

   — Ryan Lindbergh chegará em breve. A Sra. Lindbergh saiu de Londres, ela chegará um pouco mais tarde.

    Yohan assentiu distraidamente e virou a cabeça em direção à sala de cirurgia. Valentine estava lutando contra a morte lá dentro. Se não fosse pelo homem, ela teria enfrentado uma morte fria e miserável no corredor de seu apartamento.

    Apenas algumas horas atrás, a morte era apenas um conceito vago, mas agora ela ria sinistramente diante de Yohan com uma presença arrepiante. Yohan não conseguia compreender por que isso estava acontecendo com ele. Quem era realmente aquele homem, o que significavam suas palavras enigmáticas, e como Valentine apareceu na hora exata, eram mistérios que permaneciam sem resposta para Yohan. E por isso aquela situação parecia para ele como um pesadelo irreal e angustiante.

  Quanto tempo se passou? A porta da sala de espera se abriu bruscamente, e Ryan entrou com uma expressão desolada. Parecia ter vindo direto para o hospital, com uma aparência desarrumada. Com um olhar pálido e fixo, ele vasculhou a sala de espera e, ao avistar Yohan, avançou decididamente com passos largos. Seus olhos azuis estavam distorcidos pela intensa dor e confusão. Uma voz que parecia ter sido arranhada e fragmentada ecoou acima da cabeça de Yohan.

   — Yohan, o que aconteceu com Valentine? Que diabos aconteceu…?

   — … Eu também não sei direito.

   —….

   — É verdade, eu não sei de nada.

  Eu gostaria de ter algo a dizer a Ryan. Mas, assim como ele, Yohan também queria fazer essa pergunta a alguém. Ryan ficou confuso, como se não conseguisse encontrar o motivo, e repetiu a mesma pergunta, tocando ansiosamente o queixo. Então, Lucas se aproximou dele e disse com cuidado.

   — Se quiser, posso te explicar?

  Quando ele disse isso e olhou para Yohan, Ryan assentiu com um suspiro profundo. Depois que saíram da sala de espera, Yohan, que ficou sozinho novamente, apenas lançou um olhar desfocado na direção da sala de cirurgia, como antes.

   Após um tempo, Ryan voltou e sentou-se do lado de Yohan. Depois de ouvir a história dos eventos através de Lucas, ele ficou um pouco mais calmo, embora ainda estivesse abatido.

   ‘A razão pela qual Valentine levou Finn Miller ao limite foi principalmente devido à sua retaliação por ousar tocar em Yohan, em vez de tentar acelerar a fusão. Acreditamos que um dos membros envolvidos no incidente MU001 foi o responsável pelos acontecimentos de hoje.’

   Agora que Ryan entendia o contexto, ele encarou Yohan com olhos cheios de arrependimento. No entanto, o olhar que encontrou era indiferente a ponto de não revelar nem mesmo o menor fragmento de emoção.

   Ryan examinou cuidadosamente Yohan. Embora tivessem uma relação biológica entre pai e filho, os laços entre eles já haviam se deteriorado há muito tempo. E Ryan sabia que isso era inteiramente culpa dele, no entanto, isso não significava que ele não amasse Yohan. Apenas havia um dever mais forte do que seu amor por Yohan. Ryan acreditava que, para cumprir esse dever, sacrifícios inevitáveis eram necessários, e essa ideia o fez eventualmente perder ambos os filhos.

   Depois que Yohan partiu, Valentine desabou como se tivesse perdido o único sentido que sustentava sua vida. Parecia que tudo o que restava nele eram arrependimentos e frustrações sobre as quais ele nada podia fazer. Valentine, que estava desesperado, não escondeu mais sua enorme raiva de Ryan.

  ‘Do início ao fim, só havia uma coisa que eu queria… e você finalmente conseguiu tirar isso completamente de mim e destruí-lo.’

  ‘….’

  ‘Como uma resposta a isso, eu compartilho da mesma dor. Desejo que você assista com seus próprios olhos como o restante de sua vida se desenrola de maneira diferente do planejado, experimentando arrependimentos irreversíveis.

    Com palavras ambíguas, difíceis de determinar se eram uma maldição ou uma afirmação sincera, Valentine renunciou a todos os direitos como um Lindbergh e declarou sua recusa em herdar a empresa. Após o rompimento do contato, Ryan jamais imaginou que se reuniria com Valentine dessa maneira. Ele abriu a boca enquanto engolia um suspiro pesado.

   — Yohan 

  Yohan nem se mexeu, como se não pudesse ouvir a voz de Ryan. Ele simplesmente ficou em seu lugar, com uma expressão seca e vazia.

   — Lucas me contou que você está aqui esse tempo todo, por que não vai descansar um pouco?

   —….

   — Eu te avisarei quando Valentine acordar, então pelo menos durma um pouco.

   Não havia intenção de ignorar, mas Yohan não conseguiu encontrar palavras para responder a Ryan. Não tinha energia para isso. Observando Yohan, que permanecia com os lábios cerrados como uma concha, Ryan limpou o rosto com uma expressão cheia de exaustão. Desta vez, continuou com uma confissão mais solitária e autocrítica, quase como um murmúrio.

   — Yohan…eu tinha a intenção de te libertar quando chegasse a hora certa. A culpa é minha por tentar encobrir o problema por não saber qual era a resposta correta. Mas quando recebi a notícia de que você estava morto, não posso negar que senti muito.

   Desta vez, Yohan mostrou uma resposta fraca, foi porque achou que não era apropriado Ryan dizer isso a ele, enquanto Valentine estava dividido entre a vida e a morte. Yohan soltou um riso irônico. Pensei que você iria me culpar, já que Valentine acabou assim por minha causa… Mas o cinismo de John não parecia ser um problema para Ryan.

   — Achei que tinha que mantê-los separados de alguma forma. Porque  eu acreditava que essa era a única solução. Que tudo iria melhorar com o passar do tempo, e todos voltaríamos a ser como éramos antes… era muito difícil ter que aceitar a realidade se eu não pensasse assim.

   —….

   — Mas se eu pudesse voltar no tempo, nunca tomaria a mesma decisão. E como não posso fazer isso, tornou-se impossível reconquistar sua confiança para sempre.

   Os olhos de Yohan se fecharam ligeiramente e depois se arregalaram com suas palavras de autopiedade e arrependimento. Seus olhos insensíveis, ainda sem demonstrar emoção, olharam para o rosto de Ryan e depois de um momento de silêncio, Yohan respondeu calmamente.

   — Agora, não estou nem um pouco curioso sobre seus sentimentos, então você não precisa dizer essas palavras.

   —….

   — Você pode continuar com sua vida, como sempre fez.

  Percebendo que o coração de Yohan estava fechado para ele permanentemente, Ryan soltou uma risada amarga. Ele não tentou mais fazer Yohan entender nada. Em vez disso, falou em um sussurro, sua voz carregada de uma exaustão intensa.

   —… Em que ponto tudo foi arruinado?

   Era uma pergunta que Yohan também queria fazer a qualquer pessoa. Com isso, a conversa entre os dois chegou ao fim e a eterna espera recomeçou.

***

   Como se Deus continuasse a protegê-los, a cirurgia de longo prazo terminou com segurança. Valentine ainda estava inconsciente, mas o médico achou que o pior já havia passado. 

  Enquanto Ryan estava ocupado encerrando o incidente, foi Yohan quem permaneceu ao lado de Valentine. Grace, incapaz de suportar a presença de Yohan que evocava sua culpa, evitou encontrá-lo. Yohan não se importou com a reação dela. A presença dela não tinha mais nenhum significado para ele.

  Valentine estava dormindo profundamente, usando um ventilador mecânico. À primeira vista, ele parecia mais uma pessoa morta do que viva, mas sua respiração fraca fluía uniformemente de dentro do trato respiratório. Yohan, que o observava obsessivamente, como se não quisesse perder o menor movimento, aos poucos ficou sem fôlego.

  Está vivo… 

  Valentine, ele está vivo.

   — Ah….

   Depois de confirmar esse fato repetidas vezes, seus ombros, que haviam enrijecido pela tensão, sentiram-se aliviados. Yohan apoiou a cabeça na cabeceira da cama, inclinando a parte superior do corpo. A frieza do metal gelou um pouco sua pele.

   Seu cérebro, que havia parado de funcionar enquanto Valentine estava sendo submetido a uma cirurgia, lentamente começou a funcionar. Mas ele ainda não podia se dar ao luxo de pensar direito, Yohan piscou lentamente. Seus pensamentos dispersos flutuaram em sua consciência e foram varridos repetidamente.

   O primeiro pensamento que surgiu em sua mente foi a rotina que compartilhava com Valentine, que agora parecia vaga como um passado distante. Os dias em que conversavam e brigavam, passando da animosidade para a familiaridade, das expectativas para a desilusão, ainda ecoavam desordenadamente diante dele.

   O que se seguiu foi o vazio que ele teve que suportar depois que Valentine se afastou dele. Aqueles dias em que tudo se desvanecia em cores acromáticas. Naquela época, Yohan tinha uma esperança vã de que ficaria bem no futuro. Se não fosse esse momento, ele teria vivido assim, deixando o tempo passar por entre os dedos até o momento de sua morte.

   —Haa…

   Sua respiração instável se espalhou pelos lábios pálidos. Pensamentos e emoções conflitantes misturados em confusão, esquentando sua cabeça. Num turbilhão de emoções pulsando por todo o seu corpo, Yohan simplesmente começou a respirar pesadamente.

  Todas essas lembranças e emoções o deixaram temporariamente indefeso, diante do suposição de que Valentine poderia ter morrido. O que levou Yohan ao limite, durante todo o tempo em que Valentine esteve na sala de cirurgia, foi o medo de perdê-lo para sempre.

   Se Valentine nunca mais abrir os olhos, se tiver que deixá-lo ir assim, se as palavras duras que disse a Valentine se tornarem minha última despedida… Apenas a ideia dessas possibilidades fazia com que Yohan mal conseguisse respirar corretamente.

   Mas Valentine ainda estava vivo.

   Yohan encostou a cabeça no lençol. O perfil de Valentine voltado para o teto apareceu. A respiração que enchia o ventilador, a pele levemente quente e os sinais vitais em constante flutuação demonstravam sua sobrevivência.

   — …Ugh….

  Só então os soluços que ele havia reprimido com grande esforço saíram de seus lábios ressecados. Num instante, sua visão ficou completamente turva. Yohan mordeu os lábios, mas não conseguiu conter as lágrimas que já haviam chegado ao limite.

   — Uhhh…

   Como se uma represa tivesse estourado imediatamente, suas lágrimas quentes rapidamente encharcaram seu rosto. Ele cobriu os olhos com as costas da mão, sacudiu os ombros e soluçou como uma criança. O hálito que fluía por seus lábios era irregular e seu peito arfante fazia seu coração bater mais rápido. Yohan chorou inconsolavelmente e admitiu com uma sensação de derrota.

  Eu provavelmente nunca vou conseguir deixar Valentine.

°

°

continua…