No Jardim Das Rosas - Capítulo 01
Um homem vagava ao longe.
Roupas rasgadas.
Tecido amarelado.
Gotas negras caíam de suas vestes.
Seu cabelo, em mechas esparsas e oleosas, possuía nós em alguns lugares como se não fosse penteado há séculos. As pernas, secas como um pedaço de pau no auge do inverno, saíam por baixo das calças puídas e rasgadas, e não se podia dizer que o que ele calçava eram sapatos.
Parando por vezes para recuperar o fôlego, ele continuou. O lugar para onde o homem se dirigia era o subúrbio da cidade através de uma esquina seca por onde até batedores de carteira passavam como se nada tivesse acontecido, já que não havia nada para roubar. Ele não comeu nada hoje ou ontem. Seu estômago, encolhido a ponto de não conseguir digerir nem um gole d’água. O homem nem chorava mais, pois havia se acostumado com o sofrimento constante. Ele se ajoelhou nas pedras, tentando recuperar suas forças. Era impotente e, como se estivesse desaparecendo, baixou lentamente o corpo até o chão e fechou suas pálpebras.
Não havia ninguém no beco.
Não havia ninguém para odiá-lo, ninguém para bater nele, ninguém para estuprá-lo… ninguém para abandoná-lo.
Quando, então, uma sombra negra na parede cinza o cobriu.
— Ei, levanta.
Um chute forte acordou o homem.
Sua mente voltou aos poucos e percebeu estar cercado por botas pretas salteadas, batendo em seus ossos e pisando em suas pernas como se o vissem como nada além de um estorvo. Foi apenas ao ouvir um estralo e sentir uma pressão incomum que o homem abriu os olhos cheios de lágrimas e lutou com seus braços e pernas, como um inseto em convulsão, para que o deixasse em paz. O homem, que o acordou chutando com força seu corpo magro, jogou em seu rosto um saco de papel que segurava na mão. Um cheiro delicioso perfumou o ambiente. Ele mal conseguiu estender os dedos finos para agarrá-lo:
— Tem passas. — disse.
Pegou o saco e conseguiu rasgar o papel com força. Dentro, havia um pão quentinho e recém-assado. O cheiro de massa fresca penetrou em suas narinas enquanto ele sugava o ar e, de repente, a saliva caiu de uma boca tão seca quanto um deserto.
Ele puxou o pão com as duas mãos e abriu a boca.
Quando ele deu uma mordida desesperada, o homem riu. Riu e agarrou seus tornozelos. Ele abaixou as calças sujas e abriu suas pernas. No entanto, mesmo enquanto fazia isso, o pobre desamparado estava ocupado demais enterrando o nariz no pão e rasgando-o em pedaços grandes o suficiente para impedir que a mandíbula fechasse corretamente. O cara o forçou a deitar de lado e abriu suas pernas novamente. Ele tinha uma bunda magra, então se separava sem impedimento. A carne vermelha interna era feia e coberta de lodo.
— Você parece pior do que a maioria das prostitutas.
Ao comentar, o homem abaixou as calças e tirou um pênis escuro e curvo. Com os dedos, o empurrou violentamente entre as fendas da carne que havia sido rasgada e violada inúmeras vezes e, sem prepará-lo apropriadamente, mergulhou fundo no corpo ferido. Aquele que acabara de engolir o pão engasgou e tossiu. Mas era evidente que não se importava mais.
— Para de comer. Se mexa também.
O homem agitou a mão como um chicote e bateu no traseiro do outro.
Tremendo de choque, o sem-teto soltou o pão, que acabou caindo longe. Ele rastejou de joelhos para buscá-lo, mas assim que estendeu a mão e agarrou o canto do alimento que continha passas, o homem o agarrou pela cintura e o puxou para trás.
— Você tem que pagar pela comida. Onde você pensa que vai?
Após bater em sua bunda mais algumas vezes, o homem cuspiu em sua carne vermelha. Então, ele empurrou o dedo profundamente, fazendo o outro estremecer e soltou um gemido pavoroso.
— Tá tudo bem?
Mas o homem imediatamente enfiou seu pênis monstruosamente ereto até a raiz.
O sem-teto gritava, com a boca cheia de pão, mas estava tão fraco que nem os ouvidos do homem acima dele eram capazes de ouvi-lo. O órgão genital que preenchia seu corpo estremeceu, aumentando o ritmo e a fricção, tratando-o de uma forma que o fez pensar que estava prestes a arrancar seus intestinos.
Incapaz de superar o choque, o homem abraçou a comida e caiu de bruços, levantando apenas os quadris, tentando aliviar o impacto. A saliva, que escorria por entre seus lábios secos, pingou até destruir um pedaço do miolo de pão que estava no chão…
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Antigamente, o sem-teto não era um sem-teto.
Ele era um conde encantador.
Houve momentos em que ele esqueceu seu nome porque ninguém o chamava, mas ele tinha um. Talvez, num passado distante, também fosse dono de um belo castelo, talvez ele tivesse uma família. Mas já não se lembrava mais. Ele era chamado de “Você” agora, e isso só fazia com que as pessoas zombassem ainda mais dele.
Depois que o homem saiu, o morador de rua puxou as roupas para cima sem nem mesmo enxugar as coxas que pingavam sêmen. Ele pegou o pão meio comido e procurou outro esconderijo próximo. No entanto, a massa estava encharcada de saliva e se desfez, mesmo que ele não tivesse a apertado com os dedos. Ele olhou para as migalhas de passas pretas no chão e, quase como se fosse a coisa mais natural a se fazer, se ajoelhou e começou a chupar o chão para comer.
O homem do pão de passas aparecia de vez em quando, sem avisar. Às vezes, ele até trazia um amigo e dizia que ele tinha que ser “um bom menino”. Claro, receber os dois órgãos genitais ao mesmo tempo era terrivelmente doloroso, mas era algo muito mais tolerável do que a fome. E quando eles saíram, ele se escondia em um canto, o mais distante possível. Ele, então, abraçava seu corpo e começava a comer o pão e, de vez em quando, alguns doces que lhes eram dados. Ele sempre engasgava porque tinha uma emergência em digerir e tossia várias vezes. No entanto, ele sempre enfiava o doce goela abaixo e lambia cada migalha que encontrava.
As luzes dos lampiões a gás da cidade manchavam o céu noturno de carmesim. A cor, que se transformava em uma grande renda delicada e brilhante, era como as camadas de pétalas que desabrochavam no jardim de sua família – outrora, o mais esplêndido da cidade. Olhando para a cena, quase boquiaberto, o homem distorceu seu rosto até que seus lábios caídos se ergueram em um sorriso que fez pequenas rugas ao redor de seus olhos.
E então, se lembrava do passado:
Ele era Arok Taywind. Um nobre entre nobres, com uma linhagem mais antiga até que a vigente família real. Ele havia acabado de se tornar um adulto quando herdou o título de sua família, logo após seu pai falecer repentinamente de um ataque cardíaco. O jovem conde, de belos cabelos loiros, fazendo jus ao leão dourado símbolo de sua casa e olhos azuis como o próprio céu, era famoso por nunca perder sua dignidade e pose aristocrática, embora conservasse sua magnífica delicadeza. Embora, é claro, ele não fosse assim desde o início.
Ele foi obrigado a aprender.
— Arok, brincou muito hoje, meu amor?
— Mamãe!
Um leve cheiro de remédio emanava do conde, que acolheu seu filhinho.
Sua mãe, um ômega masculino, originalmente não era saudável, então ele estava sempre deitado na cama. Ele tinha uma doença degenerativa crônica e, por consequência, poucos meses de vida. Talvez, semanas. O filho, de apenas sete anos, subiu na cama agarrado aos braços ossudos da mãe e enterrou o rosto no peito dela, acenando com a cabeça em silêncio.
— Você viu o jardim de rosas, meu amor? Você pode dizer para a sua mãe de que cor são?
A janela da cama dava diretamente para o jardim de rosas, mas ela sempre perguntava isso ao filho. Talvez para distraí-lo, já que haviam tubos em seus braços, além de demonstrar constantes problemas respiratórios. Então, Arok deu uma longa explicação, usando cada palavra colorida e expressões de exclamação que conhecia. Enquanto isso, sua mãe acariciava os cabelos da criança que estavam na altura do queixo com uma mão que lembrava um emaranhado de galhos secos.
Três meses depois, sua mãe faleceu. Naquele momento, Arok chorou até seus olhos derreterem. No funeral, seu pai, ao lado dele, estava sem palavras e carregava uma expressão incrivelmente perdida em seu rosto. Ele coletou todas as rosas de todas as cores do jardim favorito de seu marido e as jogou junto ao caixão. No entanto, o homem, que não queria prejudicar o prestígio da família, criou seu filho alfa com extrema severidade e desdém a partir de então. Até porque, após a perda da mãe, o pai não suportava o choro constante do filho por conta de pequenas coisas.
— Nobres não derramam lágrimas! — ele disse.
De tempos em tempos, o pai de Arok o flagrava saindo do quarto da mãe, chorando muito. Ele o levava para o escritório e o espancava brutalmente até que sua pele sangrasse. Arok não conseguia nem esfregar as pernas inchadas e era obrigado a segurar suas lágrimas o tempo todo.
Ele sentia falta da mãe, mas evitava os olhares do pai.
Ele se escondia nas sombras, no canto do jardim das rosas, e chorava com todas as suas forças. Desabafava, dizendo “sinto tanta saudades sua” e que “daria a vida para te ver novamente”. Depois, ficava soluçando, sacudindo os ombros e prendendo a respiração até que o mordomo, que tinha a mesma expressão severa de seu pai, gentilmente pegava sua mão, se aproximando, e o abraçava com amor.
— Sua mãe não gostaria de ver assim.
Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Ele não conseguia conter as lágrimas facilmente pois o perfume do jardim era o mesmo de sua mãe, o que fazia com que a criança se emocionasse ainda mais.
Depois de um tempo, a chuva e o vento fizeram com que todas as rosas caíssem no chão e, talvez em conjunto às reprimendas do pai, o garoto endireitou sua postura e manteve a cabeça erguida pelo tempo que se seguiu. O menino de sete anos havia esquecido como chorar e aprendeu a sorrir novamente. Seu pai, um aristocrata clássico, o treinou diariamente, afirmando sua autoridade, e se gabou de que este vasto território, ao qual chamavam de lar, um dia também seria do rapaz. Isso também significava que ele deveria seguir uma etiqueta extremamente aristocrática para tudo. Embora doasse uma quantia significativa para a caridade, com foco nas crianças famintas das favelas, ele nunca se envolveu diretamente com os “periféricos”. Na verdade, ele odiava profundamente a periferia. Era visível que ele se sentia enojado com a existência de um espaço tão sujo fazendo parte da capital, dentro de seu território. Pensando nisso, o homem decidiu pedir auxílio a outras pessoas para resolver esse assunto.
Entre os plebeus, havia alguns bastante estudados ou de clãs secundários, mas que não herdaram títulos. E foram esses plebeus que ele bancou para lidar com essa parte suja da sociedade.
Além disso, graças a ele, uma pequena tradição familiar logo se tornou um grande evento do país e de considerável influência sobre todas as famílias nobres, que humildemente apelidaram: “A Festa do Chá no Jardim das Rosas”. No entanto, seu pai, que também estava com a saúde debilitada a essa altura da vida, costumava passar as noites no hospital. Então, a partir dos 19 anos, Arok assumiu o cargo de “Dono Pleno das Reuniões Noturnas”.
O homem, que não era nem tão jovem e nem tão velho, cumprimentava e conversava com seus convidados com um sorriso sutil. Ele trajava um terno azul-escuro que realçava seus olhos e exibia o cabelo loiro extremamente cuidado. Era um membro típico de uma família que carregava o título de Conde. Mas, ao contrário do que os outros viam, não era tão complicado para ele: independentemente do que a outra pessoa dissesse, bastava expressar um: “Entendo” ou “Penso o mesmo”. Além disso, todos os jovens que procuravam patrocinadores estavam ansiosos para chamar sua atenção. Assim sendo, eles pareciam bastante ocupados proferindo palavras que não eram mais do que de simples bajulação.
Idiotas sem respeito por si mesmos.
Arok riu deles interiormente.
Houve jovens que lhe dedicaram melodias comoventes, passagens tristes, belas obras-primas que lavam a mente e clássicos infinitamente profundos. Arok não se interessou por eles, mas sorriu graciosamente, pois não conseguia se livrar dos ensinamentos de seu pai, falecido no ano anterior, dizendo que “tinha adorado”. O mercado de trabalho vulgar disfarçado de festas de chá lhe despertou pouco interesse desde o início, e o senso de dever aristocrático em liderá-lo logo se esgotou.
Utilizando seu primo inexistente como desculpa para se retirar do recinto, Arok abandonou o jardim inundado pelo aroma espesso das rosas e se dirigiu ao seu caminho favorito composto por cedros através de um atalho conhecido apenas por aqueles que habitavam a grande mansão há muito tempo.
As árvores alinhadas em conjunto à calçada bem pavimentada se estendiam quase até o céu. Ali havia diversas árvores de tamanho e beleza impressionantes e que foram plantadas pelo primeiro conde, que construiu esta mansão. Assim sendo, deixaram suas formas inicialmente pequenas e, seguindo a história da família dos condes, tornaram-se cedros admiravelmente gigantes. Não foram podadas: nada foi arrancado delas e as folhas foram sempre regadas e preservadas com o maior cuidado possível. Ali, a irritabilidade que surgira pouco antes deixou seus pensamentos a medida que ele caminhava devagar e inalava o cheiro amadeirado das árvores.
Arok adorava trilhar esse caminho e odiava ser perturbado nesses momentos de lisura. Assim, como os criados do feudo nunca entravam por aqui, e como o mordomo cuidava para que os hóspedes não perturbassem “inadvertidamente” o descanso privado do Conde, este caminho só deveria ser usufruído e experienciado por ele.
Mas, quem era então aquele que estava parado ali na frente?
Como dono da mansão, ele havia isolado o local de tal forma que era absolutamente impossível entrar naquela área pela estrada. E desde que ele previu ser um convidado estúpido, em troca da intromissão desagradável, ele imaginou que um pouco de “humilhação pública” não seria uma má ideia.
Arok sorriu e caminhou até o infiltrado e, quando estava perto o suficiente para lhe dirigir a palavra, ainda pensando em que tipo de punição infligir ao pobre convidado, notou que o estranho era mais alto que a média. Ele endireitou os ombros e olhou para o outro: cabelo castanho escuro e pele levemente bronzeada. A testa proeminente e nariz e maçãs do rosto de aparência fortes. A boca fina combinava perfeitamente com sua mandíbula afiada, o fazendo pensar que o homem havia sido esculpido à mão. Mas diferente de sua expressão severa e postura firme, demonstrando orgulho típico de sua classe, os olhos profundos que o fitavam eram puros e… Belos. O rapaz era muito diferente dos escritores vulgares que perambulavam pelo jardim. A medida que Arok se aproximava, mais visível o outro se tornava. O intruso tinha a postura de um senhor da guerra.
Um anjo.
Um Deus.
O desejo de envergonhá-lo havia desaparecido. Arok ficou ligeiramente surpreso com a estranheza da situação, mas, felizmente, a disciplina rígida de seu pai se sobrepôs rapidamente à situação e ele disse:
— Creio que esteja perdido.
— Sim.
Mesmo quando questionado, o homem apenas deu uma resposta precisa, sem rodeios. Mas mesmo ouvindo a resposta composta por apenas uma única sílaba, Arok descobriu que o homem possuía a voz mais doce do mundo: algo baixa, suave, porém ressonante, simplesmente perfeita.
Como ele.
— Posso te mostrar o caminho.
— Ah sim, estou procurando um jardim de rosas, mas não consigo encontrá-lo. Esse lugar é realmente bem grande.
Uma resposta ligeiramente mais suave preencheu seus ouvidos. Parecia que ele também havia sido convidado para o chá. No entanto, sua atmosfera diferia do enxame de formigas que não paravam de perseguir sua figura de anfitrião e, para sua surpresa, ele não fazia alarde sobre Arok: não olhava para ele com olhos interessados ou buscava o bajular. Em vez disso, ele simplesmente se curvou em uma atitude demonstrando cortesia, como se fosse indiferente ao que ele representava. O homem nem mesmo se apresentou ou perguntou seu nome.
Esta foi a primeira vez que isso aconteceu.
Mesmo estranhos – completos estranhos -, ambos comportavam-se intimamente, como se fossem amigos de longa data. O jovem vestido com roupas finas, cabelos loiros brilhantes, olhos azuis e maneiras refinadas agora carregava, no rosto abastado, um sorriso sutil. Arok pensou haver conhecido alguém em quem estava interessado após muito tempo sem sentir nada além de um grande vazio.
Não demorou muito para contornarem o local e chegar à área onde se avistava o roseiral. Enquanto isso, o homem manteve certa distância, sem dizer nada, o acompanhando discretamente como uma criança perdida faria ao voltar para sua mãe. Ele se perguntou qual era o nome desse homem e, então, apesar de suas tradições, decidiu se apresentar primeiro.
— Meu nome é Arok Taywind.
Antes que fosse tarde demais, ele se virou e perguntou ao outro em frente à parede de cedro, fora da vista de terceiros:
— Qual é o seu?
O homem alto baixou os olhos, observando a mão que acabara de ser estendida à sua frente. O homem tocou a mão e Arok em uma velocidade que não era nem rápida e nem lenta, abandonando gradualmente a hesitação em apresentar-se, e respondeu de maneira concisa, como anteriormente:
— Klopp Bendyke.
Era um nome inimaginavelmente apropriado para o visitante. A combinação de som, eco e harmonia de sua pronúncia estava próxima da perfeição. A mão magra era tão grande que cobria a mão de Arok e, mesmo que a segurasse de leve, sentia a força do outro contida. Ele olhou para cima e encontrou os olhos de Klopp o observando. Aquelas pupilas escuras não mostravam a menor hesitação.
— Oh…
Arok não precisou ser legal por cortesia. O jovem estava transbordando de alegria e entusiasmo incompreensíveis, algo que o fez esbanjar de entusiasmo e abrir um grande e brilhante sorriso.
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Ganhar moedas trabalhando ou se vendendo era privilégio de poucos. Mesmo as vendas de “mão-de-obra” eram reservadas para aqueles que anunciavam suas habilidades e se vendiam.
Eram mais dias de fome do que dias de comida.
Uma simples tarefa para conseguir duas moedas era extremamente difícil para uma pessoa composta de nada além de pele e ossos, então a única coisa que lhe restava fazer para não morrer de fome… Era possuir um corpo que pudesse ser consumido. Afinal, havia pessoas de mente aberta e que não tinham nojo dos sem-teto.
Ele se escondeu em um canto mais profundo e escuro para comer seu pão. No entanto, no momento em que cruzou as pernas e se agachou para se acomodar, sentiu uma dor excruciante que o fez pensar que seus intestinos estavam se dobrando ao meio. Ele se ajoelhou na calçada, tentando não desmaiar, e sentiu uma coisa enegrecida começar a sair de seu corpo. Como se ele estivesse pressionando, embora não quisesse.
Já era o terceiro.
O terceiro feto que expeliu.
Na primeira vez doeu tanto que ele desmaiou depois de se debater e arranhar o chão até as unhas caírem. Já na segunda vez, foi tolerável. Seu coração bateu forte, mas nada além disso. Ele não podia dizer ou fazer nada para se defender. Simplesmente era uma cena comum que ocorria com frequência quando alguém se prostituía e, por acaso, tinha um útero funcional.
Ele se arrastou para um canto mais profundo e apertado do beco, com uma dor aguda que parecia uma faca perfurando seu estômago e, em seguida, um líquido amarelado e malcheiroso escorreu por sua virilha, seguido de um fluido corporal incrivelmente vermelho. Ele abaixou a calça e colocou o traseiro magro no chão frio de pedra para tentar empurrar mais. Foi semelhante à quando ia ao banheiro. Com o pão ainda na boca, ele fez caretas e gemeu de dor até que, depois de um tempo, um pedaço de carne vermelha apareceu, sendo esguichado para fora de sua entrada para revelar um monte de coágulos de aparência repugnante.
Era o que, em condições normais, se tornaria um bebê, do tamanho da palma da mão. Algo pequeno, amontoado em uma película pegajosa e brilhante que não parecia bem formada. Ele ergueu a cabeça e viu o céu colorido como rosas.
E, então, ele segurou seu bebê, com os braços vacilantes e os dedos trêmulos.
Outra vez.
Três vezes.
O pão rolou…
Deitou-se no chão frio de pedra, juntando as pernas duras e, com a mão dormente, puxou o menor até levá-lo perto da boca.
— Hum… Olá, querido…
Sua garganta chiou como uma flauta quebrada.
— Sinto muito. Sinto muito mesmo. Você… Ugh… Não é sua culpa, ok? Sou eu. Ah… Tem algo muito errado comigo…
Lágrimas escorriam de seus olhos enquanto ele beijava sua cabecinha e pedia para ele “perdoá-lo”, mas o bebê nem mesmo possuía ouvidos para o ouvir.
Mal controlando as pernas bambas, ele levantou as roupas e caminhou, carregando o que seria o cadáver de uma criança que talvez estivesse em seu terceiro mês de concepção. Por fim, disse:
— Da próxima vez, não nasça de alguém como eu.
E despediu-se com:
— Adeus…
E, então, o jogou no rio.
Todo o caminho de volta foi como ver um caleidoscópio de tirar o fôlego. O céu florido, a sombra fresca, o caminho de pedras escuras e o rio fluindo, sereno, morro abaixo. Tudo parecia um grande caos, desfoque e girando, mas seus olhos estavam rígidos e ele não conseguia acompanhar. Ele não conseguia pensar em nada sobre para onde estava indo ou se era certo seguir aquele caminho. Os murmúrios que invadiam seus ouvidos eram compostos por palavrões incompreensíveis e ele nem mesmo conseguia dizer se eram vozes reais ou uma ilusão que, agora, o atormentava após ver seu bebê.
Após secar todos os fluidos corporais expelidos anteriormente, seu corpo, como folhas secas, se arrastou e rolou até chegar a um certo canto. Junto do som dos cascos de cavalos batendo vigorosamente no caminho de pedra, ele ouviu o barulho de rodas rolando rapidamente em sua direção, e algumas carruagens pretas. A praça, que levava diretamente à margem próxima do rio, também servia como uma encruzilhada, de modo que havia movimento constante por alí. No entanto, hoje havia sido um dia especialmente difícil. Ele os encarou, observando os escudos das carruagens, e listou mentalmente cada detalhe da paisagem. Havia alguns nobres entre eles. Barões, viscondes, duques, condes…
Ele era um conde. Mas uma existência, outrora nobre, agora se tornou nada além de um monte de lixo. Não havia nada nele que mostrasse seu brilho: nada que revelasse o quão belo ele já foi um dia. Não. Nem com muito esforço ele conseguiria alcançar aquele mundo de luz que um dia ele já fez parte e imaginou que se tentasse alcançá-los, seria esmagado numa velocidade avassaladora, então, como sempre, teve que se retirar.
Ele mal conseguia levantar os pés antes de virar as costas curvadas. Moveu lentamente os ombros curvados e, finalmente, fez o mesmo com a cabeça, agora, pesada. Buscou sair do ambiente quando, naquele momento, uma carruagem preta veio correndo de longe como se estivesse acompanhando as outras. Os quatro cavalos, com suas crinas brilhantes, e a carruagem robusta e de aparência solene não diferia dos outros, então por que ele não conseguia tirar os olhos dela?
A carruagem galopante cortou o vento e passou por ele e então…
Ele viu.
Uma silhueta clara entre os seres borrados.
Dentro da janela translúcida da carruagem, havia uma pessoa que certamente era inesquecível. Com seu cabelo castanho escuro penteado para trás, ele embalou um sorridente garoto loiro em seu colo.
Eu conheço esse homem. Pensou. Eu conheço aquele garoto.
Mas não importa o que ele fizesse, jamais conseguiria alcançá-los.
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Arok estava de mau-humor.
O salão da mansão do conde, onde acontecia um grande banquete, era ocupado por uma multidão de convidados rindo e conversando animadamente, mas nenhum daqueles rostos tinha o que Arok queria. A pessoa que ele procurava era alguém com rugas entre as sobrancelhas e olhar vazio, sem sorriso, sem palavras e ligeiramente zangado.
— Arok, você está particularmente bonito hoje.
— Obrigado.
Um homem, cujo rosto parecia fácil de recordar, aproximou-se, fingindo ser amigável. Mesmo a poucos passos de distância, o nariz de Arok se mostrou extremamente irritado com o cheiro do perfume do outro. Além disso, era irritante que o homem flertasse descaradamente enquanto apresentava um sorriso suspeito. Não importava para ele que ambos fossem Alfa ou que ambos fossem homens. Para início de conversa, isso não era mais um tabu. Na verdade, mais do que isso. Ele fugia do homem, pois era alguém de baixo nível e seguia a tendência vulgar de se encontrar casualmente para conversar sobre política e se gabar sobre como sua casa era maravilhosa. Mas o adversário não parecia ter seu orgulho ferido, embora Arok o afastasse com um sorriso frio que gritava “me deixe sozinho”. Afora, um ômega resolveu se aproximar, com olhos deveras lascivos. Ao ver o homem que o incomodava discursar ao recém-chegado exatamente as mesmas coisas que havia falado para ele anteriormente, Arok se retirou, com a sensação de que poderia vomitar a qualquer momento por respirar o mesmo ar da dupla por alguns segundos enquanto estavam juntos.
— Onde diabos você está?
Em suas mãos, encaixadas abaixo da cintura, havia um convite que ele havia escrito com o coração na mão. No entanto, ele não via seu convidado tão desejado há várias horas e ele definitivamente não era o tipo de pessoa que iria embora sem se despedir. Afinal, esse banquete foi apenas uma desculpa que ele inventou para poder falar com o outro.
Eventualmente, como em outras ocasiões, ele caminhou silenciosamente pelo salão de banquetes e realizou algumas tarefas simples para que o tempo passasse. Logo depois, um lacaio enviado para observar o jardim voltou e relatou que o homem que ele queria ver estava em direção ao caminho dos cedros. A tez do Conde, que até então era fria e inexpressiva como um pedaço de mármore, se encheu de cor e alegria, como se tinta pingasse sobre um lençol branco até se espalhar completamente. Então, rapidamente, Arok caminhou, se dirigindo ao local indicado.
O caminho, iluminado pelo luar azulado, era composto por lanternas alaranjadas, encaixadas individualmente embaixo de cada árvore, tornando o ambiente incrivelmente mágico. Inicialmente, este caminho não deveria ser decorado com lâmpadas, mas parecia que o outro gostava do caminho de cedros, então, ele deliberadamente ordenou que fosse perfeitamente iluminado para que as luzes o acompanhassem por todo o caminho. Claro, havia também um lacaio que habilmente redirecionava os convidados para impedir que qualquer outra pessoa entrasse junto aos cerdos e que o mantinha bem informado sobre o que o outro estava fazendo ou não.
Arok respirou fundo, buscando acalmar seu coração acelerado. Seu orgulho ainda não lhe permitia mostrar suas emoções e agir como um cachorro que acabara de conhecer seu dono. Inclusive, ele estava ciente de que estava agindo como um adolescente e sabia muito bem que era embaraçoso fazer um escândalo quando a outra pessoa não aparece, nem exibiu palavras ou ações significativas em sua direção. Ao mesmo tempo, havia também uma sensação de ressentimento em relação ao seu companheiro por deixá-lo tão ansioso e nem mesmo conseguia fingir que não estava apaixonado por ele.
E ele tinha certeza que o outro sentia o mesmo.
Mesmo quando todos o bajulavam, dizendo que ele tinha riquezas, fama e autoridade, ele não mostrava interesse. Então, se o outro realmente não estava interessado, porque respondia aos convites diários? Era algo óbvio demais para ser ignorado.
Ele, então, deliberadamente agarrou o convite e foi procurá-lo. Pensou em fazer uma piadinha usando a carta como desculpa, caso o clima parecesse um tanto estranho, mas depois pensou que talvez fosse estúpido em pensar tanto nisso. Será que o outro iria aceitar o convite visivelmente escrito com sua caligrafia? E se ele simplesmente pulasse toda essa cerimônia e lhe desse um presente de aniversário?
— Parece bom…
A luz tremeluzia através dos cedros que separavam o jardim de rosas.
Arok desacelerou seus passos deliberadamente enquanto tentava endurecer sua expressão levemente excitada. Queria evitar que o outro percebesse sua presença. Desejava ver sua expressão natural. Assim como quando ele perguntou por que ele tinha uma cara tão séria na segunda vez que eles se encontraram.
O corpo alto, refletido na penumbra das lanternas, era claramente visível de sua posição. A distância diminuiu rapidamente, e o que havia entre eles agora era apenas uma árvore com inúmeras folhas pequenas. Ao se aproximar percebeu que estava resmungando para si mesmo. Só de se imaginar junto ao outro falando e falando, com os olhos sérios e a mão no queixo, parecia que o riso iria escapar inadvertidamente dele, o que o fez morder os lábios.
Então, Arok não aguentou mais, correndo ao redor da árvore para se revelar.
— Te encontrei, Klopp!
Assustado com a aparição repentina, os olhos de Klopp se arregalaram ligeiramente e ele virou a cabeça para olhar em sua direção. E no momento em que seus olhos se encontraram, Arok sentiu que poderia até desmaiar: suas pupilas profundas, que costumavam brilhar ferozmente, pareciam ligeiramente brilhantes e sua boca, que estava sempre bem fechada e mal soltavam as respostas necessárias, desenhava um sorriso suave, formado por uma curva perfeita.
Ele começou a rir e, então, a postura defensiva que ele havia colocado alguns minutos atrás desmoronou de uma vez e seu rosto branco que carregava o título de conde, se agitou instantaneamente, sendo preenchido por um lindo rosa.
— Olá…
Arok desejou correr só para estar ao lado do outro, mas conseguiu reprimir o impulso.
Sentiu o coração apertar e pensou: Isso não pode ser um sentimento unilateral. Não é possível que você não sinta o mesmo. Qualquer ômega no mundo e mesmo a maioria dos alfas desejavam ter Arok Taywind como seu cônjuge. Não havia como um aristocrata de baixo escalão sem antecedentes o rejeitar assim.
Arok se aproximou com um grande sorriso, cheio de alegria, só de pensar em tê-lo.
— Arok…
— Olha… eu fiz um convite personalizado para você.
— Nossa, você teve todo o trabalho de o escrever à mão? Quanta consideração…
A expressão do homem, que antes era sorridente, voltou a ficar séria. Arok caminhou até Klopp, invadindo naturalmente os limites considerado educado de espaço pessoal, e pegou suas mãos. Estava pensando em perguntar a ele se estava interessado na “Primeira Edição da Interpretação da Declaração de Direitos” que ele havia comprado recentemente com uma grande soma de dinheiro, quando…
Ele percebeu tarde demais que não estavam sozinhos.
Coberto pelo grande corpo do Alfa, estava um homem pequeno com cabelos loiros e olhos azuis semelhantes aos seus. Ele ficou um pouco surpreso ao ver Arok, mas o cumprimentou de maneira bastante educada.
— Olá, Conde Taywind. Obrigado por me convidar para a festa.
Arok o conhecia. Ele era filho de um parente distante que só vira uma vez quando seu pai morreu. Ele era primo de Arok e o filho mais velho de um visconde. Seu nome, pelo que lembrava, era Rafiel. Ele não se lembrava de tê-lo convidado, mas parecia que ele estava na lista básica de convites do conde após o funeral.
O ômega se recostou levemente com a mão na cintura de Klopp. Além disso, os braços fortes do Alfa estavam em volta de seus pequenos ombros. E foi só depois de olhar para eles alternadamente que Arok percebeu… Que o sorriso do homem era direcionado para aquele ômega, e não para ele. E quando franziu a testa, não era mero fingimento, mas sua sinceridade se manifestando.
Em um instante, uma sensação insuportável de vergonha e desprezo o consumiu. Arok olhou para os dois alternadamente, murmurou que os esperaria lá dentro para continuar a festa e então se virou rapidamente. Embora ele fosse o dono desta mansão e anfitrião do evento, ele fugiu para o seu quarto.
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Continua…
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Tradução: MiMi