O Primeiro Mandamento - Capítulo 18
Nevou desde o início da manhã. Em Nova York, com a chegada de novembro, as temperaturas caíram drasticamente, trazendo um inverno repentino. O rádio que tocava junto com o alarme meteorológico mostrava a previsão do tempo e dava notícias sobre o trânsito durante o caminho para o trabalho.
«Aparentemente, o frio intenso começa hoje. A temperatura atual é de 10°F, com máxima de 20°F ao longo do dia, e a previsão é que caia para 6°F no horário de pico da noite. A neve que começou a cair às 5 da manhã está causando congestionamento extremo na Grand Central Parkway, enquanto na Astoria Boulevard há problemas nas linhas férreas devido à onda de frio… Espera-se que o frio extremo causado pelas condições climáticas incomuns continue até a próxima semana, e por isso…»
Ao ouvir a voz do âncora, Valery olhou pela janela, onde o sol ainda não havia nascido, o céu estava cinza e sombrio, e podia-se ouvir vagamente o vento soprando ao longe. A paisagem nevada que se desenrolava além da janela de vidro que cercava um dos lados do quarto tinha seu próprio charme, mas ele não conseguia sentir nada a respeito. Com um suspiro cansado, Valery ergueu a mão para esfregar os olhos. Não tinha conseguido dormir durante a noite. Há dois anos sofrendo de insônia, a situação só piorava, e os remédios já não faziam efeito há muito tempo.
Lentamente, ele se levantou da cama e pousou os pés no chão. O cansaço não passava, e seus pés doloridos latejavam devagar. Ultimamente, isso estava acontecendo com frequência. A dor, que ele mal sentia por causa dos calos de tantos anos, agora reaparecia periodicamente, tornando-se uma rotina.
Com os cabelos loiros caindo sobre a testa, Valery ficou observando o exterior, perdido em pensamentos. Fazia tempo que ele não via a neve cair. Ele sentiu uma sensação estranha ao ver a neve, algo como uma tristeza imensa, daquelas que quase fazem você querer sumir, ou talvez uma saudade absurda de algo que nem sabia o que era. Era uma emoção difícil de descrever em uma só palavra, e então Valery se levantou abruptamente, precisava tomar seus remédios.
Dirigindo-se à cozinha, que parecia grande demais para quem vivia sozinho, Valery percebeu que seu ânimo estava cada vez mais deprimido enquanto caminhava pelo corredor. Movendo as pernas longas com pressa, ele chegou à cozinha e abriu o armário, de onde tirou um frasco de comprimidos e engoliu dois deles. Enquanto tomava um copo de água, o celular sobre a mesa da cozinha vibrou várias vezes seguidas.
Encostado na pia, ele olhou para o telefone por um instante antes de pegar o aparelho. Ao verificar, notou dezenas de notificações: mensagens de texto, WhatsApp, Facebook. Conferiu a mais recente. Eram colegas do corpo de balé.
[Valery, tá muito frio! E o trânsito está um caos. Você também sempre chega mais cedo que o normal. Ah, como você mora perto do Central Park, dá pra vir andando, né? Que inveja. Num dia como esse, acho que vou dormir na sua casa.]
Sara foi a mais direta na mensagem, mas as outras eram parecidas. A maioria só falava do frio insuportável, sem muita novidade. Algumas tinham um leve tom de flerte, outras eram mais objetivas sobre o trabalho. Valery também conferiu e-mails sobre a agenda. Para focar nas apresentações desse mês, haviam deixado de lado ensaios fotográficos e outros compromissos menos importantes. Enquanto revisava os compromissos que se acumulavam, outra mensagem chegou. Era do Ryan.
[Lerusha, está muito frio. Se agasalha bem. Vamos nos ver na hora do almoço?]
Era o tipo de mensagem de sempre, mas, dessa vez, até Ryan estava falando sobre o frio. Por um instante, Valery se lembrou de um lugar: o jardim diante de um prédio simples, sempre coberto de neve. Pensou nas grossas jaquetas, cachecóis, e nas botas forradas que eram normais naquela cidade. Com isso, seu humor, que já estava ruim, piorou ainda mais.
O inverno de Nova York era bem diferente de Saratov, e ele conseguiu não pensar no passado nos últimos dois anos. Mas, por algum motivo, a neve de hoje trouxe tudo de volta. Antes que pensamentos sobre alguém específico surgissem, Valery respondeu a mensagem.
[Claro. Onde vamos nos encontrar?]
[Hoje o trânsito vai estar complicado, então eu vou até aí. O que você quer comer?]
[O que você quiser, Ryan.]
Depois de uma breve pausa, Ryan sugeriu algo diferente do normal.
[Tem um restaurante russo que foi recomendado por amigos. Quer ir lá? Disseram que o borscht e o pelmeni são melhores até que os da Rússia. Foi o Greg do balé que me falou, lembra daquele dia no pub?]
Valery parou ao ler a palavra *borscht*. Justo hoje, o prato escolhido era comida russa. Já estava se sentindo inquieto, como se alguém estivesse tentando puxar à força suas lembranças enterradas.
‘Não, não quero.’
Essas palavras chegaram até sua garganta, mas ele conseguiu segurá-las. Escreveu uma resposta rapidamente e quase enviou, mas se deteve a tempo. Não posso recusar nada a Ryan, que é sempre atencioso e generoso comigo. Desde que se estabeleceu ali, devia muito a ele, então Valery costumava ceder sempre. Sentia-se mal por isso e por tudo o mais. Muitos achavam que eles eram um casal, mas, na verdade, nunca houve nada que justificasse isso. Além do mais, Valery ainda não conseguia vê-lo dessa forma.
Por causa da culpa, Valery nunca recusou nada do que Ryan lhe pedia.
[Certo.]
Engoliu a vontade de recusar e apagou as mensagens anteriores. Assim que Ryan confirmou o horário, Valery desligou o celular e se debruçou sobre o balcão da cozinha, cobrindo o rosto com as mãos. Desde o momento em que acordou, a sensação pegajosa de tristeza o envolvia por completo. Sentia como se pudesse ser engolido por essa melancolia opressora, e forçou-se a se mover. Com passos pesados, Valery foi até o banheiro, acreditando que ao se lavar, esse sentimento pesado e sombrio poderia ser levado embora.
Hoje, ele tinha uma consulta marcada antes de ir para o balé. Como os remédios para dormir não faziam mais efeito, passou a fazer consultas semanais. Como Ryan havia comentado, hoje qualquer trajeto levaria o dobro do tempo. Sem conseguir chamar um Uber, Valery decidiu ir a pé. Era incômodo ser reconhecido por algumas pessoas, mas era melhor que desperdiçar tempo esperando. No fundo, ele também não queria ficar com a mente vazia para pensar demais.
—Aquele ali não é o Valery Belov? É sim! Será que posso dizer que adorei as fotos que ele fez? Dizem que ele não fala muito.— Ouviu sussurros das pessoas que o seguiam, então apressou o passo. Como seus passos eram mais largos que os outros, ele logo começou a escapar daqueles que o reconheciam.
Ficou calmo depois disso. A neve caindo limitava a visão das pessoas, muitas passavam correndo, murmurando sobre o frio. Alguns olhavam para ele, que caminhava sem guarda-chuva e vestindo um casaco fino, com uma certa curiosidade, mas logo perdiam o interesse. Nova York era assim mesmo. Um lugar onde a atenção e a indiferença se misturam. Valery sentiu uma solidão inexplicável enquanto andava entre as pessoas, que caminhavam focadas apenas em seus destinos, mesmo sem ter um motivo claro para isso.
O consultório ficava entre a East 69th Street e a 2nd Avenue. Um prédio antigo, minimamente reformado, que exalava um leve cheiro de madeira desde a entrada. O porteiro abriu a porta e o cumprimentou, ao que Valery respondeu com um leve aceno e entrou no elevador. Apertou o botão do 5º andar e ficou observando os números mudarem. De repente, um sentimento estranho tomou conta dele. Deixou Saratov, que parecia um inferno, e conseguiu se estabelecer, mas acabou desenvolvendo insônia. Não havia mais nada que o atormentasse, mas conseguir dormir profundamente ainda parecia impossível; isso era contraditório.
—Olá, Sr. Belov.
Quando entrou na clínica, Olivia o cumprimentou. Fazia dois anos que se conheciam, e, depois de se verem inúmeras vezes, eles já tinham o costume de perguntar como o outro estava.
—Oi.
—Conseguiu dormir um pouco?
Valery respondeu com um sorriso vago. O sorriso que ele fazia era sempre o mesmo. Não sorria muito, e, quando precisava sorrir, o fazia de forma profissional, apenas curvando os lábios. Como quando atuava no palco ou encontrava pessoas por questões de trabalho. Nova York era um lugar onde o talento importava, mas não era tudo, então Ryan ensinou a Valery como sorrir e atuar quando necessário. Todo o sucesso e adaptação que Valery conquistou em Nova York, ele devia a Ryan.
—Estou preocupada com você. Parece que está dormindo ainda pior ultimamente.
—Vai melhorar.
Valery repetiu algo que já disse dezenas de vezes. Vai melhorar. Todos diziam isso, e ele também queria acreditar. Na verdade, havia muitos que não entendiam. Valery era alguém com sorte. Conquistou a posição de primeiro bailarino em apenas dois anos, um lugar que muitos passam a vida tentando alcançar, e possuía o talento para representá-lo. Não só isso. Por acaso, um agente de uma agência de modelos que ele e Ryan encontraram em um jantar inesperado se interessou por ele, e sua carreira continuou a ascender. Como se o destino estivesse esperando por ele, tudo fluía com facilidade, e Valery foi apelidado de jovem estrela que surgiu como um cometa.
Com tanta fama e dinheiro, como alguém poderia ser infeliz?
Havia quem tentasse descobrir o motivo. Lucas, o recepcionista que trabalhava ali antes de Olivia, espalhou rumores sobre o passado de Valery, com base apenas no seu sobrenome. Felizmente, Khaleesi ajudou a encobrir certos detalhes do passado dele, então poucas informações acabaram sendo divulgadas. No fim, havia muitas lacunas na história associada ao nome Belov. Valery só recuperou o sobrenome depois de 15 anos, e durante esse período, não existiu qualquer registro sobre Valery Belov.
Com o nome Valery Sorokin, no entanto, era outra história.
—Pode entrar. Agora é a sua vez, Sr. Belov.
Assim que Valery foi pego de surpresa pelo sobrenome que surgiu em sua mente, ele foi chamado para a consulta. Um homem acabou de sair da sala do Dr. Morgan. O paciente anterior, talvez? Enquanto passava sem pensar muito nisso, o perfil do homem lhe pareceu familiar, fazendo-o parar subitamente. Cabelos escuros e olhos claros – algo até comum. Ryan também era assim, afinal. Mesmo assim, o leve sorriso nos lábios do homem o fez lembrar de alguém, e, sem perceber, Valery ficou encarando. Sentindo o olhar, o homem virou o rosto.
—…Aconteceu alguma coisa?
Assim que olhou diretamente para o homem, seu corpo, antes rígido, finalmente se moveu. Quase chamou alguém pelo nome, mas, ao ver o rosto do desconhecido, percebeu que ele não se parecia em nada com quem ele conhecia. Ele não era tão bonito, não tinha o olhar intenso, e, além disso, era mais baixo.
—Desculpe. Confundi você com outra pessoa.
Depois de uma breve desculpa, Valery entrou rapidamente na sala. A Dra. Morgan, que estava organizando alguns papéis, sorriu assim que o viu.
—Você chegou?
—Como a Dra. está?
—Muito bem. E você, Valery?
Morgan era uma boa médica, com qualificação completa para oferecer tanto aconselhamento quanto terapia psiquiátrica. Embora não tivesse uma aparência particularmente marcante, era difícil esquecê-la depois de uma conversa com ele. Valery sentou-se no sofá, respondendo com um sorriso silencioso.
—Esse sorriso me diz que as coisas não estão muito boas, não é?
—Desculpe.
—Por que você está se desculpando, Valery? Eu que sou uma péssima médica. A insônia é complicada. É uma questão emocional, e os remédios têm suas limitações.
Morgan repetia essas palavras toda vez. Ela queria que Valery finalmente revelasse o que escondia, mas ele insistia em manter isso guardado por dois anos. No entanto, hoje, ele quase assentiu imediatamente com a cabeça para a observação dela.
—Está nevando muito lá fora. Teve cuidado ao vir?
—Vim a pé.
—Que sorte você tem. Talvez seja melhor eu dormir aqui no hospital hoje.
Morgan disse isso olhando para a grande janela de uma das paredes do escritório. Embora a vista não fosse tão bonita quanto a do estúdio de Valéry, ainda era boa o suficiente para ver a neve caindo.
—Mesmo assim, eu gosto que esteja nevando. E você, Valery? Você gosta de neve?
—Não.
A resposta saiu mais rápido do que ela pretendia. A negação firme surpreendeu Morgan um pouco.
—Parece que você realmente odeia a neve. Dizer isso imediatamente é um sinal forte.
Logo, o olhar de estranhamento de Morgan se transformou em interesse. Ela se sentou adequadamente no sofá.
—Valery, você não é alguém que expressa suas preferências de forma tão intensa. Por que você odeia tanto a neve?
Era verdade. Valery franziu ligeiramente a testa e hesitou por um momento. Se parasse para pensar, quando estava em Saratov, nunca se importou tanto com a neve. Mas….
“Está nevando muito.”
Havia uma pessoa que odiava neve.
—Valery?
Morgan chamou cuidadosamente Valery, que estava em silêncio. Ah, Valery, inconscientemente, levantou a mão e tocou o rosto. Morgan rapidamente apontou isso.
—Parece que você tem algo a dizer. Valery, você pode me contar sobre?
Ela sussurrou com um tom de voz ansioso.
—Se não, você não vai conseguir melhorar. Ultimamente, você mal dorme duas horas por noite, certo? E você, tem um trabalho que exige muito do seu corpo. Desse jeito, não vai aguentar nem mais um ano. Quando você chegou aqui, conseguia dormir pelo menos seis horas, e desde o ano passado, no máximo cinco horas. As opções restantes agora são quase inexistentes, Valery, é hora de você se abrir.
Com um tom suave, Morgan apontou a verdade. Valery tentou, como de costume, dizer que estava tudo bem, mas a tristeza que sentiu pela manhã voltou. Uma forte sensação de desânimo o fez sentir que estava no fundo do poço. Era uma sensação insuportável. Não havia nada de errado, mas parecia que algo estava muito errado. Então, tornou-se difícil resistir. Valery hesitou e, com dificuldade, abriu a boca.
—……Quando neva, eu me lembro de alguém.
Mencionar essa pessoa era algo estranho. Valery havia evitado intencionalmente falar sobre tudo o que aconteceu em Saratov com Ryan. Queria deixar essa história no passado. Ao deixar Saratov, Valery não trouxe nada consigo, e, por isso, naturalmente, a conversa sobre essa pessoa não surgiu. Ele até jogou fora o celular que estava em boas condições na época. A última mensagem que trocou o fez sentir-se tão estúpido e envergonhado que olhar para ela era uma tortura insuportável.
—Quem é essa pessoa?
Morgan, como era de se esperar, perguntou quem ele era. Valery soltou um suspiro agudo, como se tivesse sido apunhalado. Seus dedos tremiam levemente. Morgan, que observou rapidamente a reação dele, falou calmamente.
—Se for muito difícil, não precisa falar. Apenas compartilhar isso hoje já é um grande passo.
Morgan cuidadosamente colocou a mão sobre o dorso da mão dele. Era verdade. Não havia necessidade de forçar a barra.
—Vendo sua reação, parece que foi alguém que te machucou muito. Se for uma lembrança dolorosa, não precisa trazê-la de uma só vez. Temos tempo.
Será que realmente temos muito tempo?
Valery pensou que estava difícil de suportar. Não sabia exatamente o que era tão difícil, mas a frase sobre ter muito tempo o deixou sem esperança. Sentia que algo estava prestes a explodir dentro de seu peito e que, se isso acontecesse, tudo desmoronaria irreversivelmente.
—Não sei por que essa pessoa vem à minha mente.
Valery soltou essas palavras como se estivesse pedindo ajuda. Morgan o observou em silêncio.
—Foi a pessoa que mais me decepcionou no mundo, mas por que é tão difícil esquecer?
As palavras começaram a sair desordenadamente.
—Por que não consigo esquecer a pessoa que me enganou durante toda a minha vida, traiu minhas expectativas, nunca me contou nada e manteve isso em segredo até o fim?
Valery levantou a cabeça. Seus olhos verdes, distorcidos, estavam cheios de lágrimas, sem perceber que estava chorando, ele falou de novo.
—Ele é alguém que sempre fez coisas horríveis, mas sinto que vou continuar pensando nele. Eu.. eu estou tentando me livrar disso, mas, Morgan, não sei como fazer. Não temos mais nada a ver um com o outro e nunca mais nos encontraremos…
—Valery.
Morgan segurou cuidadosamente a mão dele. A expressão dela estava séria, fazendo Valery recuperar o foco por um momento.
—Não sei quem é a pessoa, mas memórias dolorosas não desaparecem de imediato. Quanto mais profundas as cicatrizes, mais tempo leva para curá-las. Às vezes, isso pode levar 10 anos ou até uma vida inteira. O cérebro tende a relembrar as más memórias, mesmo nos sonhos, para tentar esquecê-las. Se você está sempre pensando nessa pessoa, isso é um sinal de que seu coração está se esforçando para curar a ferida.
Valery ouviu as palavras de Morgan em estado de transe.
—Você acha? Mas…
Na verdade, ele havia tentado de todas as maneiras não pensar nele.
—Eu tentei, de todo jeito, não me lembrar dessa pessoa. Fiz muito esforço para isso.
—Talvez o problema seja exatamente esse esforço, Valery. Não posso entender completamente, pois não estou na sua pele e não sei os detalhes, mas talvez tenha sido o seu esforço excessivo que tenha cansado seu coração.
Isso parece fazer sentido. Ele nunca havia se aberto para ninguém, então ninguém sabia, mas com toda certeza sua mente estava sempre fugindo de algo.
—Coisas ruins precisam ser ditas e expostas. Guardá-las só se torna veneno, Não há problema em dizer qualquer coisa para mim, você pode xingar o quanto quiser. Está tudo bem.
Morgan ficou em silêncio, como se estivesse esperando. Com a sugestão de que deveria falar, Valery ficou pensando em como começar. Ele se sentia perdido. Ao contrário do tempo em que sempre estava em contato com aquela pessoa, agora, devido aos anos em que tentou não se lembrar, levaria tempo para trazê-la à mente.
Olhos azuis. Não, mais do que azuis, eram misturados com cinza. Mesmo depois de ter conhecido muitas pessoas em Nova Iorque, Valery nunca tinha visto olhos com aquele tom de azul acinzentado. Em seguida, ele se lembrou do rosto. Um queixo bem definido e um olhar afiado sob sobrancelhas espessas. Aqueles olhos frios, que ao se desviar e me encontrar, se iluminavam com um sorriso que suavizava sua aura severa, tornando-se como os de um garoto travesso.
Diferente da sua pele branca, aquele homem tinha uma tonalidade pálida, que destacava seus cabelos negros. Apesar de não serem cores chamativas, Valery sempre se via cativado quando o homem sorria ao olhar para ele.
Ao pensar em cada uma das coisas que compunham aquele homem, algo surgiu abruptamente dentro dele. As emoções fluíram por seu coração como se tivesse tocado suavemente a borda de um copo de água completamente cheio. Ele era alguém que só lhe trazia lembranças terríveis, alguém que não deveria passar disso, mas, ao pensar nele, o primeiro sentimento que emergiu foi uma estranha saudade. Não havia outra palavra para descrever aquilo além de saudade. Porque, por mais estranho que fosse…
—Eu sinto sua falta.
Sua voz tremeu.
—Não sei por que sinto falta de alguém assim..
Mas essa é a verdade. Valery começou a enumerar as coisas que aquele homem havia feito com ele: as agressões que quase o levaram à morte, o estupro, e, como se isso não fosse o suficiente, a mentira descarada de que carregava um filho dele. E não era só isso.
Desde o começo, esse bastardo…
Ele matou os meus pais.
Ele havia pedido que confiasse nele, mas Valery não conseguia acreditar nele de forma alguma. Toda vez que ele abre a boca, só diz mentiras. Sempre afirmava que fazia tudo por ele, mas nunca explicava exatamente como aquilo era para o bem dele. Não havia confiança entre os dois.
—Vocês eram amantes?”
Com a pergunta de Morgan, Valery piscou, surpreso.
—Não, Alyosha era…
O nome escapou inconscientemente, deixando Valery tenso. O som do nome “Alyosha” ecoou em seus ouvidos, ao mesmo tempo que a lembrança das mãos dele abraçando-o tomava forma.
—Você o chame de Alyosha.
Aquele apelido insignificante, mas dito com tanta urgência, trouxe de volta o olhar penetrante, os braços que o abraçavam, o perfume doce que se espalhava no ar. O que diabos era essa pessoa, afinal? Ele havia resgatado alguém sem qualquer laço de sangue, feito dessa pessoa sua família – se é que isso pode ser chamado de família… e, ao mesmo tempo, fazia sexo comigo se agarrando desesperadamente a mim enquanto dizia ser meu Omega.
Os sentimentos que Valery tinha por ele eram tão confusos quanto a própria definição daquele homem. Ele não era seu irmão mais velho de verdade, mas sempre foi assim. Não era sua família, mas sentia como se fosse. Não era seu amante, mas agiam como se fosse. Em meio a tantas incertezas, a única certeza era que ele o havia traído.
—Pelo apelido, parece que vocês eram bem próximos.
Morgan sussurrou. Valery encontrou seus olhos abruptamente e balançou a cabeça.
—Não.
—É assim mesmo?
—Morgan, eu não consigo fazer isso.
Valery declarou rendição. Ele não tinha coragem de revisitar aquelas memórias, pelo contrário, já estava arrependido. Mencionar aquele homem, em vez de aliviar seu coração ou permitir que desabafasse, parecia que o levaria à loucura. Antes que Morgan pudesse impedi-lo, ele se levantou, nesse momento Morgan, segurou Valery.
—Valery, você precisa pegar o remédio. Não precisa falar nada, mas ao menos tente a nova medicação.
Ela se apressou até a mesa e começou a rabiscar algo em um papel. Com o coração acelerado, Valery agarrou a maçaneta da porta, tentando acalmar o turbilhão dentro de si, mas mesmo assim a voz do homem começou a ecoar em sua mente.
“Eu sou seu Omega, não sou…?”
Não.
“Desculpa, Lerusha.”
Não.
“Eu nunca quis te machucar. O que mais me apavora neste mundo é te perder… ver você sofrer…”
De que adianta isso?
“Eu não sei como me expressar. Você tem razão, eu sou um criminoso, estou rodeado de gente como eu, sei que não sou normal. Essas são só desculpas, mas eu nunca quis te machucar. Eu estraguei tudo.”
E mesmo assim, depois de dizer coisas assim, ele nunca falou o que realmente importava.
“Isso importa? O importante é que estamos juntos, você e eu.”
Como se estivesse lendo seus pensamentos, o homem do passado continuava a sussurrar em sua memória. Naquela época, Valery realmente acreditava nisso. Mas, ironicamente, quanto mais o tempo passava, menos ele lembrava das ações do homem, e mais das palavras que ele disse no último dia em que se viram.
“Assim como você quer, nunca mais nos veremos.”
Depois de devolver seu sobrenome, o homem passou por Valery. Aquele que, não importava o que Valery dissesse, nunca o soltava, o deixou ir pela primeira vez. A partir daquele dia, em vez de se lembrar de todos os pecados do homem, Valery se pegava revivendo a imagem de suas costas enquanto se afastava sem olhar para trás. O homem havia mostrado a ele o pior que podia, mas nunca tinha lhe abandonado.
Era isso que o deixava mais louco.
Os pais do homem mataram os seus pais, e ele, tomado por uma culpa miserável, o acolheu e criou. Contudo, não conseguiu cuidar dele adequadamente, manipulando-o ao longo do tempo. Valery sabia que deveria odiá-lo. Não deveria sequer pensar nele como família, muito menos nutrir outros sentimentos por ele. Uma pessoa racional e normal certamente agiria assim, mas…
—… É possível querer ver alguém que só te fez coisas ruins?
O ódio e o desprezo eram os únicos sentimentos permitidos a ele, mas Valery ainda carregava outros sentimentos. Morgan, com um papel contendo o nome do remédio, caminhou lentamente em direção a Valery. Parando na frente dele, Morgan olhou para frente e entregou o papel.
—Sim.
E respondeu:
—Se você o amou muito.
Morgan colocou cuidadosamente o papel nas mãos de Valery. A mão que segurava a maçaneta apertou com força. A palavra *amor* ecoou em seus ouvidos.
***
Ryan chegou mais uma vez com um presente. Todos próximos a Valery sabiam de seu problema crônico, e, como sempre, Ryan estava preocupado com a insônia dele, depois de um abraço leve, o ômega entregou a ele uma sacola, dizendo que era um presente. Com um sorriso habitual, Valery olhou dentro e encontrou chá de ervas e suplementos, recomendados para insônia. Ao agradecer, Ryan sorriu de volta e o conduziu até a mesa. Naquele dia, os cabelos negros e os olhos azuis do ômega chamaram sua atenção mais do que o normal.
—Como foi no hospital? Você pegou a nova medicação?
Assim que se sentaram, ele expressou preocupação. Com uma estrutura delicada e encantadora, Ryan era um Omega que frequentemente recebia declarações de amor. Trabalhava em uma das empresas de publicidade mais renomadas de Nova York e estava sempre rodeado de pessoas. Era compreensível. Gentil e atencioso, quem não ia gostar de alguém assim?
—Sim. Decidimos aumentar um pouco a dose.
—Você já não está tomando bastante? Tenho medo de que algo ruim aconteça, Valery. Que tal mudar de médico?
A expressão de Ryan ficou séria. Ele segurou suavemente o dorso da mão de Valery enquanto sussurrava, e aquele gesto trouxe uma mistura de gratidão e peso para Valery.
—Foi você quem recomendou esse lugar, não foi? Você disse que tinha melhorado bastante lá.
De maneira inexplicável, quanto mais ele recebia o carinho de Ryan, mais isso se transformava em uma sensação de dívida, em vez de um afeto recíproco. Esse peso virou uma espécie de algema que mantinha Valery ao lado dele. Não que ele estivesse pensando em se envolver com outra pessoa, mas mesmo assim, era cruel deixá-lo nessa situação. Já faziam dois anos que ele fazia Ryan esperar. E se considerasse o tempo que ele já tinha esperado antes, seriam pelo menos seis anos.
—Eu disse isso, mas isso não significa que funcione para todos.
Ryan franziu as sobrancelhas com uma expressão de preocupação, enquanto mexia na capa do cardápio, ele parecia ter algo a dizer, o que fez o coração de Valery afundar. Sempre que Ryan demonstrava hesitação, Valery sentia aquele medo familiar. Sim, estava com medo.
Medo de que Ryan se declarasse novamente, pedindo para que ele respondesse aos seus sentimentos.
—O que você quer comer?
Valery rapidamente mudou de assunto, abrindo o cardápio à sua frente e perguntando com gentileza. Durante os dois anos ao lado de Ryan, mesmo sem experiência em lidar com pessoas ou Omegas, ele havia aprendido a guiar a situação com alguma habilidade. Ryan riu levemente, dizendo:
—Quero provar o que mencionei antes. Quando estava em Saratov, nunca tive a chance de experimentar comida russa de verdade.
A mão que estava prestes a virar a página do cardápio parou no meio do caminho. Valery abaixou o olhar, encarando as palavras em russo ao lado da tradução em inglês. Será que Ryan esqueceu tudo? Talvez estivesse fingindo ter esquecido ou achasse que deveria agir assim. De qualquer forma, parecia ter apagado da memória os eventos terríveis que quase aconteceram naquele dia.
Sem qualquer aviso, sua mente foi inundada por lembranças. Memórias que ele nunca havia revisitado voltaram com força total. Para ser sincero, quase não se lembrava dos dois dias em questão. O sofrimento causado por tudo o que Ryan contou sobre seus pais e pela ruptura definitiva com *ele* foi avassalador demais.
Ryan, por sua vez, cuidou de tudo em seu lugar. Ele organizou a ida para Nova York, pediu que policiais buscassem os pertences necessários no apartamento e fez todos os preparativos para que Valery pudesse sair daquela situação. Enquanto Ryan trabalhava para tirá-lo de lá, Valery apenas se sentou olhando para a parede, revivendo repetidamente o momento em que deixou *aquele homem* para trás.
Naquela época ele certamente estava feliz.
Ele falava com o homem ao telefone sobre assuntos banais do dia a dia e compartilhava conversas sobre o futuro. De maneira irônica, Valery chegou a pensar que aquilo era felicidade. Ele sentia tanta falta do homem que era quase insuportável. Certo dia, reduziu seu tempo de ensaio, saiu apressado para atender uma ligação de Alexei, mas depois percebeu que havia esquecido no estúdio o presente que tinha comprado para dar ao homem, então, voltou ao balé só para buscá-lo.
O filho deles era importante, mas para Valery, garantir que o homem não ficasse doente era ainda mais importante. Ele pesquisava sobre várias coisas que poderiam ser boas para a saúde de um Omega. Embora alguns textos afirmassem que era inútil, muitos outros defendiam que cuidar de um Omega grávido fazia bem para ambos.
Durante essa busca, Valery acabou lendo algo sobre ciclos de calor. Ele estava procurando suplementos para o homem quando se deparou com um comentário que dizia algo como: ‘Depois de engravidar, os ciclos de calor pararam.’ Ao ler aquilo, ele ficou paralisado por um momento, mas preferiu ignorar e seguir adiante.
Se o homem estivesse mentindo naquela época, Valery provavelmente teria escolhido fazer vista grossa e acreditar no que ele dizia. Porque, no final, acreditar era mais fácil. O fazia mais feliz.
Perdido em suposições irracionais e ilógicas, Valery sentia como se estivesse estagnado. O tempo passava para todos ao seu redor, mas para ele parecia que tudo estava parado. Seus pensamentos giravam em círculos, sempre voltando ao mesmo ponto: Naquele dia eu não deveria ter voltado. Aquela maldita medicação… poderia ter pego depois. Se tivesse feito isso, teria fingido que não sabia de nada e continuado vivendo com ele no Canadá.
Esses pensamentos tolos o atormentaram por dois dias seguidos. Mas, no dia em que finalmente estavam prestes a partir para Nova York, foram atacados. Diferentemente do que Ryan pensou, os homens que vieram atrás deles não demonstraram piedade. Muitas pessoas morreram.
Naquela noite Ryan tremeu de medo. Foi nesse momento que Valery percebeu a gravidade da situação. Ele entendeu que não podiam continuar ali e, ao mesmo tempo, lembrou-se do aviso do homem:
“No momento em que for capturado, você vai implorar para morrer. E eu não vou conseguir te salvar. Sei que sua vida foi miserável, Valery Sorokin, mas o que você conhece como miséria não chega nem perto do que eu já vi.”
Por ironia do destino, Valery só compreendeu o mundo do homem quando se viu diante da morte. Ele finalmente entendeu o tipo de ambiente em que o outro vivia e do que ele estava tentando protegê-lo. Aqueles homens não tinham compaixão ou consciência, para eles, matar e torturar que faziam sem hesitação. Foi então que Valery percebeu quão incrível era o fato de o homem ter sobrevivido a tudo isso sem tirar nenhuma vida.
Enquanto essas conclusões invadiam sua mente, Valery acabou perdendo a consciência. Quando acordou, estava sozinho em uma cela. Suas mãos e tornozelos estavam amarrados com abraçadeiras. Ele se lembrou de como seu corpo tremeu incontrolavelmente ao enfrentar o primeiro sinal de perigo, então ouviu vozes vindo do corredor, do lado de fora.
“Ah, o jovem mestre deve estar animado hoje. Alexey Sorokin se tornou mesmo um Omega? Nem eu acredito.”
“Para ser honesto, isso me preocupa um pouco. Você sabe como o jovem mestre trata os Omegas.”
“Bem… acho que é o destino. Afinal, ele é um traidor. Parece que o sangue do traidor falou mais alto.”
Entre as palavras difíceis de compreender, Valery captou apenas o nome do homem com absoluta clareza. A partir daí, ele acabou perdendo completamente o controle. Se esqueceu de tudo o que ele havia feito anteriormente e agiu apenas com o pensamento fixo de que *seu Omega* estava em perigo.
Com uma força muito maior do que quando esteve preso em casa, conseguiu romper as amarras de cabo de nylon. Num movimento rápido, jogou os braços para baixo com força, quebrando as amarras que prendiam seus pulsos, as cordas em seus tornozelos foram quase arrancadas com pura determinação. Talvez estivesse em um estado de êxtase ou cegueira emocional, mas conseguiu superar o capanga que guardava a porta, quase como um golpe de sorte. Com um único chute, sentiu os ossos do outro quebrarem, mesmo sem usar toda a força que podia. Honestamente, até agora não ele entendia como conseguiu fazer isso.
Enquanto vagava pelos corredores vazios, procurando freneticamente, Valery ouviu Ryan chamar pelo nome do homem. Ao abrir a porta e entrar, deparou-se com uma cena que o fez, mais uma vez, sentir emoções equivocadas. Mesmo diante de uma postura tão violenta, ele não conseguiu temer ou desprezar o homem. Em vez disso, sentiu medo… medo de que ele quebrasse a promessa que havia mantido por Valery. Detestava a ideia de que ele desperdiçasse os sacrifícios que fez, arriscando-se, por causa de alguém que não merecia.
Valery tentou pará-lo e, só depois que o homem recuperou a lucidez, ele também voltou à razão. Foi apenas ao ouvir Ryan que percebeu que não deveria está agindo daquela maneira. Embora o mais provável fosse que o homem tivesse enfrentado a situação mais perigosa, Valery forçou-se a ignorar sua preocupação, ele precisava fazer isso. Porque era o certo. Porque era o que ditava a moral.
Porque era… o comportamento que uma pessoa normal deveria apresentar.
—Lerusha, no que está pensando?
Ryan segurou a mão de Valery, que estava olhando distraído para o menu. A textura branca e macia da mão do Omega era diferente da que ele lembrava do seu Omega.
Não, não.
Horrorizado consigo mesmo por ter esse tipo de pensamento, Valery engoliu seco. Tudo isso é errado. Não deveria mais pensar nele. Talvez seja a hora de trocar de médico. Sim, Ryan estava certo, ele sempre dizia o que era certo, então desta vez também estaria certo.
—Estava pensando no que você disse.
Valery desviou os olhos do cardápio lentamente e sorriu.
—Tudo bem trocar de hospital?
Ryan piscou, permanecendo em silêncio por um momento. Ele olhou para Valery com um ar ligeiramente inquieto, mas acabou assentindo. Por alguma razão ele parecia ansioso.
—Sim, tudo bem. Posso procurar um lugar que tenha consulta disponível já para amanhã.
—Eu mesmo posso procurar, não tem problema.
—Não, Lerusha.
Ryan segurou sua mão com urgência.
—Deixe que eu faça isso.
O gesto era desesperado, como alguém tentando segurar areia que escapa por entre os dedos. Aquela atitude o fez lembrar muito de outra pessoa.
—Não vá. Eu estava errado. Então…
Valery lembrou-se de quando afastou o homem que suplicava para que ele não fosse embora. Pensar naquela cena fez com que ele não conseguisse afastar a mão de Ryan agora, como se estivesse retribuindo uma dívida a quem jamais poderia compensar diretamente.
* * *